“CRIME E CASTIGO” de Dostoiévski ganha acurada resenha de Tomasz Lychowski, poeta, pintor, escritor, tradutor, crítico de cinema e autor publicado pela Letra Capital (Meu caminho para a lua, 2010; Recomeço, 2016; Post scriptum, 2018). Nessa resenha, Tomasz convida o leitor a mergulhar no mundo de Fiódor Dostoiévski, trazendo uma reflexão profunda sobre as misérias humanas retratadas em “CRIME E CASTIGO”.

 

CRIME E CASTIGO

                                                              “Em lugar da dialética, começava a vida…”

                                                                                                           Fiódor Dostoiévski

O meu neto Lucas, de 23 anos, finalmente me convenceu, já beirando os 86 anos, a ler Crime e Castigo. Eu já tinha lido alguma coisa de Dostoiévski, mas não tive coragem de enfrentar as seiscentas páginas desse clássico. Diz-se que Henry James não conseguiu terminar a leitura. Já Joseph Conrad escreveu um romance inteiro (Under Western Eyes) polemizando com Dostoiévski.

E não é fácil mesmo! Somente ao chegarmos à centésima página é que ocorre o assassinato. São, ainda, necessárias as trezentas páginas a seguir para só então começar o desenvolvimento da narrativa de forma mais ágil. Nabokov, o conterrâneo de Dostoiévski, comenta essa dificuldade. A partir da página 400, tudo se torna mais leve e fluente. Há, então, mais ação nesse clássico, que Thomas Mann chamou de maior romance policial de todos os tempos.

Outra crítica que Nabokov faz diz respeito aos personagens. Segundo Nabokov, eles não evoluem. Do início ao fim, permanecem inalterados. A mãe de Raskólnikov, sua irmã, seu fiel amigo e tantos outros, são sempre os mesmos. Sobretudo, Sonia, uma das personagens mais românticas e angelicais da literatura universal. As suas reações e ações são previsíveis. Os “bons” são sempre bons e os “maus” são sempre maus. É verdade que Raskólnikov é capaz, vez ou outra, de um gesto de bondade, mas nele prevalece ao longo do romance o homem ideal. Não faltam sentimentos, não faltam fortes emoções, mas falta coração, porque, acima de tudo, predomina a dialética. Essa idealização de alguns personagens e a demonização de outros, produz um desequilíbrio, que causa certo  desconforto.

Nesse aspecto concordo com Nabokov e, particularmente, é por essa mesma razão, que considero o personagem Svidrigáilov o mais interessante de todos. E o mais realista, feito de carne e osso. E de paixões extremas. Nele, excepcionalmente, a maldade e a bondade se entrelaçam numa transmutação psicológica estupenda. E nele, somente nele, há o elemento surpresa. Tenho para mim, que Dostoiévski, teve por ele um carinho especial. Talvez, até, com ele se identifica nessa surpreendente gangorra mental e existencial.

Morte e violência são ingredientes recorrentes em Crime e Castigo. Diz-se que o pai de Dostoiévski foi assassinado e ele próprio passou por um fuzilamento simulado. São tragédias e vivências, que resultam em sequelas definitivas. Imaginem alguém, já preso à cadeira elétrica, prestes a ser eletrocutado, aguardando o momento derradeiro e libertado somente no último instante. É, portanto, compreensível que muitos personagens apareçam no romance como pessoas emocionalmente instáveis e moralmente confusas.  Bebe-se muito no romance. Isso explica o desequilíbrio, o delírio e o fantasmagórico presente em vários personagens. Esses personagens e nós também nos sentimos balançando na tênue fronteira que divide o real do surreal.

Raskolnikov é um protagonista que, na realidade, mais parece ser um anti-protagonista, um anti-herói. Amado, socorrido e paparicado por todos, tem atitudes antipáticas, repelentes, irritantes. É objeto de verdadeira e incompreensível adoração, mas se irrita, despreza, julga e condena. Logo ele! Fica difícil conviver com esse personagem ao longo das seiscentas páginas do romance. Até mesmo nas últimas páginas, ele não mostra grande arrependimento. Matei a velhinha, e daí?

O problema é que ele não apenas matou a “velhinha” (seu projeto longamente premeditado, acalentado e intelectualmente elaborado: “alguns merecem ser mortos”), mas matou também Lizavieta, que, por azar, o surpreendeu na cena do crime. Com mais esse assassinato, Dostoiévski parece querer dar um golpe certeiro nesse arcabouço dialético do seu “protagonista”. Ele não apenas matou a “velhinha”, ou seja, a idea, a teoria que ela representava, mas também matou alguém que não se encaixava na sua filosofia de morte útil. De morte “necessária”. E o aventado motivo pecuniário é desmontado por tudo que acontece a seguir.

Hoje em dia, fala-se muito em ideologia. O que é ideologia? Ideologia é o que pensamos que seja a realidade. A partir de uma construção de pensamento nos relacionamos com o mundo e procuramos, fieis a essa nossa visão, agir sobre o mundo, sobre a sociedade e nela pautar a nossa vida. Foi a partir de ideologias que foram cometidos as maiores atrocidades, desde a antiguidade até os tempos modernos. As ideologias do Übermensch e do Marxismo real, ao serem postas em prática individual e coletivamente, devastaram o século XX. Mas, como já foi dito, também cada um de nós pode construir individualmente a sua própria ideologia, ou seja, distanciar-se da realidade. Acho que Dostoiévski concordaria comigo de que os santos são os mais realistas, os mais respeitadores da realidade concreta, não obstante serem grandes místicos (ou, talvez, justamente por isso!).

Será que foi tendo isso em mente que Dostoiévski criou um dos personagens mais marcantes da literatura? Um personagem para o qual o homem real tem que ser submetido, regido e dominado pelo ideológico? Um protagonista ideal e não um de carne e osso? Já no final do romance, aparece uma frase enigmática do autor de Crime e Castigo (citada acima). Talvez justo nela, é que se encontra a resposta. E uma profecia.

O que mais me impressionou em Crime e Castigo no tocante a forma, é o uso que Dostoiévski faz do tempo psicológico. Esse tempo invade e instiga a mente do leitor com o que se passa na consciência, subconsciência e até nos delírios dos personagens. Não há espaços vazios. Tudo que povoa a mente do personagem, o leitor acompanha ao vivo. É um Big Brother psicológico de 24 horas. Um determinado personagem, não é um protagonista do agora e, depois, o da semana que vem. Não é protagonista de uma sequencia histórica, ele é um personagem do instante, do que acontece existencialmente, psicologicamente neste momento.

Nós, leitores, não somos, portanto, desconectados por um período do tempo para sermos reconectados algum tempo depois; acompanhamos tudo full time. Agora. Por isso, já no final do romance, quando lemos que se passaram “três meses”, isso nos  choca, deixa desconsertados. Estávamos acostumados ao tempo que não passa e, eis, o tempo que passa.

Os diálogos são, na realidade, extensos monólogos. Longos discursos e dissertações, mas os lemos até com certo prazer porque o personagem interage com ele mesmo o tempo todo.  Desvia-se do assunto, comenta, se contradiz. Evidentemente, na vida real isso soaria irreal. Seria até bastante irritante.

Qual é a mensagem que Dostoiévski pretende nos passar? É a mais romântica possível. O amor “derrota” até o mais detestável, egoísta, arrogante e miserável dos homens.  Raskólnikov é vencido pelo amor mais puro, mais abnegado, mais humano e ao mesmo tempo espiritual. Quando ele aperta com força a mão de Sonia (que tantas vezes repelira!), ela finalmente tem a certeza de que Raskólnikov está salvo. Que depois de tanta tormenta haverá um futuro. No final da estória Raskólnikov se redime? É redimido, malgré lui-même? Fica no ar essa pergunta e também outras de difícil resposta.

Crime? Sim. Castigo? Nem tanto. Prêmio?

Sem o crime, não teria ocorrido na vida de Raskólnikov a redenção na pessoa de Sonia. O perdão, a felicidade, a paz e, sobretudo, um sentido em sua vida. Tudo ele deve a ela. Ao anjo enviado por Deus, quem sabe o próprio Arcanjo São Rafael, protetor dos caminhantes. Afinal, o lado místico de Dostoiévski está muito presente em seus escritos.

A paixão pelo Dostoiévski! Como se explica? Talvez porque em todos os seus personagens há algo dele e de nós mesmos. Nós nos identificamos com ele, padecemos e nos transfiguramos com ele. Ele tem a capacidade de invadir o nosso íntimo e dele se apossar. Assim, mesmo aquilo que foge aos cânones literários, nós acabamos aceitando. Afinal, ninguém é mais perfeito do que um personagem.

Termino com palavras de elogio ao tradutor Rubens Figueiredo. Excelente a sua tradução.

Tomasz Łychowski

Julho, 2020

Para nós, confinados no pandetempo, Dostoiévski tem uma mensagem especial. Que, embora muito verdadeira, esperemos que não seja tão definitiva!

“… Doente, sonhou que o mundo todo parecia condenado ao sacrifício por uma peste terrível, desconhecida e nunca vista, que provinha das profundezas da Ásia para a Europa… Apareceram criaturas microscópicas que se instalaram no corpo das pessoas… A peste crescia e se alastrava cada vez mais…” (CRIME E CASTIGO, página 595)

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