O museu imaginário de Fernando Duval
O meu encontro com o insólito universo wasthiano aconteceu por acaso, há mais de trinta anos. Foi por março ou abril de 1985, quando percorria sem pressa as tendas dos buquinistas no Sena.
Lembro-me que manuseava velhos papéis numa pilha de gravuras e estampas alusivas à idade média. E então encontrei o surrado envelope e seu estranho conteúdo: uma paisagem coberta pela neve, que parecia estampar imagens da Capadócia, e o fragmento de uma espécie de dicionário, ou enciclopédia, com verbetes de personagens exóticos. Interessei-me pelo tema imediatamente.
Comprei o envelope e fiz muitas perguntas ao alfarrabista, que estava alegre com a minha compra, obtendo prontas e objetivas respostas.
Ele havia adquirido o material numa antiga livraria de Milão. Obtive o endereço sem dificuldade. Dois dias depois, tentando desvendar aquele mistério, eu já estava na Itália, vasculhando montes nunca remexidos de papéis, no empoeirado sebo que me fora indicado em Paris como sendo o local de origem do meu esfarrapado envelope.
Terminei encontrando um maço de pinturas de acrílico e um texto volumoso com várias páginas datilografadas que tratavam do que parecia ser a história de um planeta situado nos confins de uma galáxia distante, que girava em torno de dois sóis acompanhado por quatro satélites. E por sofrer a influência de dois sóis e quatro luas, a desestabilizada órbita do planeta Fahadoika proporcionava incríveis intermitências climáticas e enlouquecia seus habitantes através do fenômeno da bissolaridade.
Apreendi, lendo o texto em italiano, que o povo do continente do Wasthawastahunn, também conhecido por Wastha, desenvolveu um típico modo de vida que oscilava entre a realidade e a fantasia, ocupando-se de inúteis atividades e de uma obstinada devoção aos cultos professados sob a égide de um guia espiritual conhecido por Gabinoso.
O texto, rico em detalhes, incluía mapas, acidentes geográficos, e a descrição completa da flora e da fauna, entremeado de relatos pertinentes aos seus mais destacados personagens dotados de excêntrica inteligência. Havia, ainda, a indicação de que o texto fora traduzido do português e atribuído a um certo Fernando Duval, que imaginei ser um nome fictício, um artifício literário criado pelo verdadeiro autor da narrativa e dos desenhos.
Com o tempo, já familiarizado com o povo do Wastha, fui organizando todos aqueles papéis e zelei por eles durante muitos anos, meio sem saber o que fazer com o material.
O mundo mudou, contrastando com o universo imóvel e estratificado do planeta Fahadoika. Até que surgiu a internet e suas imensas possibilidades, o que me levou a descobrir que Duval era uma pessoa real, um pintor que residia num pequeno apartamento da Rua Santa Clara, na zona sul do Rio de Janeiro.
Fizemos contato e Fernando se surpreendeu quando relatei as vicissitudes do meu achado, atribuindo o texto em italiano ao vazamento de informações enviadas pelo gosto da distração a um amigo da Itália de quem nunca mais ouvira falar, que também costumava colecionar, como tantos outros, desenhos do Wastha comprados nas suas viagens ao Brasil. Ficamos amigos.
Anos depois, já um tanto idosos, sentados à mesa de um restaurante, Fernando Duval me autorizou a publicar os escritos e os desenhos, desde que participasse da diagramação e revisão dos textos, com o que concordei com o maior prazer. E assim nasceu a narrativa agora pela primeira vez destinada à publicação, que não é mais do que a retocada versão, para o idioma português, do texto de Fernando Duval, ilustrado pelos detalhados desenhos de sua autoria.
Carlos F.S.Diniz
Gaúcho, professor aposentado da UFPEL, autor do livro “João Simões Lopes Neto, uma biografia” (AGE,Porto Alegre, 2003), contemplado com o Prêmio Açorianos de Literatura/2004
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